Banco Central prepara moeda virtual para 2022
(Dida Sampaio/Estadão Sede do Banco Central; instituição já definiu algumas diretrizes para o real digital, mas espera o resultado do laboratório para fechar o desenho completo)
Programar uma geladeira inteligente
para comprar sozinha os produtos que estão faltando ou ter os itens cobrados
automaticamente quando são colocados no carrinho do supermercado sem precisar
passar pelo caixa podem parecer cenas de um filme futurista. Mas são promessa
do Banco Central para uma realidade não muito distante.
Depois do sucesso do Pix, o BC
quer ampliar as formas de pagamento no País com o real digital, ou a versão
virtual da moeda brasileira. A instituição lançou na semana passada um
laboratório para avaliar possibilidades de uso e a capacidade de execução de
projetos com o real digital e prevê começar testes com grupos específicos até o
fim de 2022.
Sede do Banco Central;
instituição já definiu algumas diretrizes para o real digital, mas espera o
resultado do laboratório para fechar o desenho completo © Dida Sampaio/Estadão Sede do Banco
Central; instituição já definiu algumas diretrizes para o real digital, mas
espera o resultado do laboratório para fechar o desenho completo
O real digital também tende a
facilitar e baratear a criação de contratos de empréstimos personalizados, para
poucos dias ou com pagamentos em meses específicos. E ainda pode favorecer a
integração com sistemas de pagamentos internacionais, permitindo que se faça
uma compra em outro país com conversão imediata.
Os testes, contudo, tendem a
durar um bom tempo, e a moeda virtual deve demorar muito mais que o Pix para
chegar ao consumidor final. O BC vai precisar criar um novo ambiente financeiro
para colocá-la de pé, com todas as garantias de segurança e proteção de dados
dos consumidores.
“É quase como se estivéssemos
fazendo mais um sistema financeiro para funcionar acoplado ao que temos hoje”,
destaca o coordenador dos trabalhos sobre o real digital no BC, Fabio Araujo.
O Banco Central já definiu algumas diretrizes para o real digital, mas espera o resultado do laboratório para fechar o desenho completo. Já está certo que a moeda virtual vai ser “idêntica” ao real em papel, mas só vai poder ser usada em transações eletrônicas e será armazenada em carteiras digitais de instituições financeiras. A moeda digital vai além do Pix ou qualquer transferência eletrônica porque permitirá movimentar reais que não existem fisicamente.
Diferença
A tecnologia a ser utilizada
ainda não foi definida, mas o blockchain, que é usado nas criptomoedas, como o
bitcoin, é o caminho mais provável. Porém, diferentemente do bitcoin e de
outros criptoativos, o real digital estará sob o controle do BC, ou seja, será
uma Moeda Digital do Banco Central (CBDC, na sigla em inglês).
Na prática, será reconhecido
oficialmente como moeda brasileira. Ou seja, o valor sempre estará atrelado ao
mesmo do real convencional. Já as criptomoedas não são consideradas moedas
correntes, mas um ativo (que precisa ser convertido por uma moeda convencional,
seja dólar ou real) com valor instável e efeito especulativo.
Hoje, apenas as Bahamas têm
uma CBDC em plena operação, o sand dollar (dólar de areia), mas outros bancos
centrais estão desenvolvendo suas moedas digitais. A China já tem um piloto em
funcionamento em algumas cidades e pretende fazer testes com visitantes nos
Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, no ano que vem.
Suécia, Coreia e Japão também
estão mais avançados. Mas a maioria dos projetos mais adiantados planeja
resolver problemas do sistema de pagamentos atual, como concentração de mercado
ou ausência de um meio de pagamento instantâneo.
No Brasil, a expectativa é que
o real digital aumente a inovação, criando soluções que não eram viáveis com o
dinheiro em papel ou então barateando as já existentes.
“Muitos bancos centrais
pretendem melhorar o sistema de pagamentos ou trazer acesso aos não
bancarizados. Não é o caso do Brasil, que já tem o Pix. O BC quer uma maior
eficiência de troca em um mundo digital”, explica Marcos Viriato, presidente da
Parfin, fintech global de criptomoedas e especialista no assunto.
“Não estamos atrasados em
relação a países que estão fazendo pagamentos de atacado e pagamentos
instantâneos, porque já temos soluções e a CBDC traria apenas ganhos marginais
sobre elas. Então, temos tempo para desenvolver uma plataforma de pagamentos
inteligentes e trazer inteligência do mercado cripto para dentro do ambiente de
forma segura”, diz Araujo, do BC.
Possibilidades
A Federação Brasileira de
Bancos (Febraban) criou um grupo de trabalho para debater o real digital e, com
ajuda de uma consultoria, encontrou 26 possibilidades de uso da moeda no mundo.
No caso brasileiro, porém, seriam 12, divididos em três grandes grupos.
O primeiro deles seria o
delivery versus pagamento, que são soluções que permitiriam que o pagamento de
uma encomenda ocorresse ao mesmo tempo da entrega. Já o segundo grupo é de formas
de pagamento conectado à internet das coisas, como é o caso da geladeira
inteligente, em que máquinas tomam decisões com base em algum evento do mundo
real.
Outra aplicação diz respeito à
“tokenização” de investimentos tradicionais, isto é, representados em ambiente
digital e negociados via blockchain. A vantagem, neste caso, é que o token –
que representa uma obra de arte, um imóvel ou uma arroba de boi, por exemplo –
pode ser dividido em partes, com valores mais “acessíveis” para a maioria dos
brasileiros.
Segundo o diretor de Inovação,
Produtos e Serviços Bancários da Febraban, Leandro Vilain, o grupo agora vai
dar um “mergulho mais profundo” nesses 12 casos para avaliar quais seriam os
prioritários, com base nas demandas do cliente. A expectativa é de que até o
fim do ano a Febraban tenha em mãos e apresente ao BC uma lista de projetos que
o setor tem mais apetite para investir.
Passo a passo
O edital para a inscrição de
projetos relacionados ao real digital no laboratório criado pela Federação Nacional
de Associações dos Servidores do Banco Central (Fenasbac) em parceria com o BC
ficará aberto de 10 de janeiro a 11 de fevereiro. A seleção vai mirar modelos
de negócios que tragam ganhos para o sistema financeiro atual e que tenham
capacidade de execução ao longo do processo.
“Temos conversado com os
bancos e fintechs. Temos um leque de ideias, mas queremos saber onde tem
interesse do mercado em atuar para saber por qual caminho vamos desenvolver a
tecnologia”, explica Araujo, do BC.
As propostas selecionadas
serão divulgadas no início de março e, na sequência, de 28 de março a 29 de
julho, será a etapa de execução. Nessa fase, servidores do Banco Central e
voluntários do mercado e da academia farão um acompanhamento da evolução dos
projetos a cada 15 dias.
A expectativa da direção do BC
é de que, ao final desse processo, já tenha produtos maduros que poderiam ser
levados para o mundo real. Depois, o órgão precisará integrá-los ao sistema
atual, um processo que deve demorar mais tempo. “Mas a ideia é fazer algumas
integrações parciais para ter pilotos específicos e testar com consumidores e
provedores de serviços financeiros”, afirma Araujo. “Nós esperamos que a fase
de pilotos se inicie em 2022 e entre em 2023.”
Como vai funcionar?
O que é?
O real digital, que está sendo
testado pelo Banco Central, será uma versão da moeda brasileira, mas que poderá
ser usada apenas no meio digital. É exatamente a moeda que já usamos no dia a
dia, mas não vai dar para colocar no bolso.
Onde vai ficar?
O cliente deverá ter uma conta
separada para as moedas físicas e outra para o real digital em bancos, fintechs
e outras instituições financeiras autorizadas pelo BC. E vai poder transferir
de uma para a outra.
Tecnologia
A tecnologia utilizada é o
blockchain, a mesma que vem sendo utilizada para as criptomoedas, como o
bitcoin e o ethereum.
Como usar?
Delivery x Pagamento: O real
digital poderia ser “programado” para que o dinheiro fosse liberado para o
vendedor no momento da entrega da mercadoria para o cliente. Isso valeria, por
exemplo, para pedir comida, para compras online ou para aquisição de carros ou
imóveis, em que o pagamento ocorreria assim que o bem estivesse no nome do
comprador. Também poderia valer para o comércio exterior.
Internet das coisas: Com o
real digital – e a nova tecnologia 5G, que acabou de ser leiloada –, uma
geladeira inteligente poderia verificar que produtos estão faltando e fazer o
pedido direto no supermercado. Ou um carro poderia pagar “sozinho” o pedágio na
estrada. Só precisariam ser programados antes.
Transferências internacionais:
O real digital poderia ser trocado mais facilmente por dólar ou euro digital,
mas dependerá do acerto entre os Bancos Centrais.
Dinheiro programável: O real
digital possibilitaria que um determinado montante de dinheiro seja usado para
apenas uma função. O exemplo clássico é que o vale-alimentação só pagaria
compras de comida.
Pagamentos offline: O Banco
Central também quer permitir que o real digital funcione em locais sem acesso
às internet, da mesma forma que o dinheiro físico.
Já tem no mundo?
O primeiro: As Bahamas foram o
primeiro país a lançar oficialmente uma moeda digital do banco central, o sand
dollar (dólar de areia), em outubro de 2020. A justificativa do governo do
país, que conta com cerca de 350 mil habitantes, era promover uma maior
inclusão financeira no arquipélago, que tem mais de 700 ilhas, das quais cerca
de 30 habitadas.
Mais avançados: A China já tem
um piloto do yuan digital em algumas cidades e pretende fazer testes com visitantes
nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, em 2022. Até agora, segundo dados do
Banco Popular da China (PBOC), a nova moeda já foi usada para movimentar quase
US$ 10 bilhões. Há cerca de 140 milhões de carteiras com a moeda digital no
país. A Suécia, a Coreia e a Suécia também estão mais avançados no processo de
criação de suas moedas digitais.
Modelos: A moeda digital pode
ser usada apenas para transações entre instituições financeiras (atacado) ou
para o uso de toda a sociedade (varejo). Esse é o modelo que, pelo projeto que
está em desenvolvimento, deve ser adotado pelo Banco Central brasileiro.
Fonte: O Estadão